Maurice RAVEL
Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.
As Mil e Uma Noites são talvez o maior clássico da literatura árabe e já há muito se incorporaram ao patrimônio literário universal. Esse entremeado de contos e histórias que não se furtam a lidar com o fantástico e com o maravilhoso constitui, ao mesmo tempo, uma grande experiência narrativa e uma grande ousadia social. No primeiro caso, basta observar as histórias que levam a outras histórias, as vozes que dão voz a outras vozes, as narrativas que despontam de outras narrativas, numa teia sutil que se configura, veladamente, metalinguística. No segundo caso, porque confere a responsabilidade dessas narrativas a uma mulher, num contexto social em que a figura masculina era soberana. Scheherazada torna-se, assim, a protagonista da obra, apesar de poucas vezes aparecer explicitamente na narrativa. A esposa do Sultão das Índias envolve seu marido durante mil e uma noites com o artifício da narrativa para evitar ser morta: o sultão, desiludido com a fidelidade feminina, decidira arbitrariamente matar, depois da noite de núpcias, todas as mulheres com que se casasse. Depois de mil e uma noites de narrativas, a cólera do sultão, já abrandada, se transforma em amor por sua esposa, a quem concede viver.
Scheherazada é, assim, uma figura metalinguística que personifica a própria narrativa, envolvente e sedutora, que vence a cólera e os instintos mais irracionais pela ação de um espírito inteligente e sutilmente ardiloso. A teia de histórias que sua voz constrói transforma-se, pouco a pouco, no tecido que irá forrar o seu leito nupcial. Tanto o Oriente quanto o Ocidente veem nessa personagem emblemática a poderosa idealização da figura feminina porque, com seu talento, seus dotes e sua inteligência, seduz e conquista até os mais altos potentados, transformando as paixões em amor, a fúria em ternura, a sua própria sentença de morte em esperança de vida.
Não é por acaso, portanto, que a música ocidental, desde o século XIX, se vê encantada por essa personagem. Já Schumann, em seu Álbum para a Juventude, op. 68 (coleção de pequenas peças para piano), constrói uma Scheherazade moldada em uma melodia cíclica, que parece nunca se resolver por completo. Não se diga, ainda, da obra homônima de Rimsky-Korsakov, plena de exotismos e de evocações que procuram, de um lado, representar musicalmente as figuras do próprio sultão e de sua esposa e, de outro, certas ambientações que alguns contos das Mil e Uma Noites sugerem.
Ravel intitulou Shéhérazade não uma, mas duas de suas composições: a primeira, composta em 1898, foi concebida para ser a abertura de uma ópera que nunca chegou a ser concluída. Ainda assim, Shéhérazade, Ouverture de Féerie foi a primeira obra orquestral de Ravel. A segunda, composta em 1903, chama-se simplesmente Shéhérazade e constitui-se de um ciclo de três canções para voz aguda (soprano ou tenor, embora geralmente seja cantada por voz feminina) e orquestra.
Na verdade, desde as exposições universais em Paris, Ravel se vê fascinado pela música e pela cultura do Oriente. Nesta, de um lado, e no jazz e no blues, de outro, ele não vê mero material para pintar com certos modalismos um já ineficiente sistema tonal. Ravel vê, em ambos os casos, caminhos possíveis que lhe permitissem se afastar cada vez mais da tonalidade, sem, porém, se submeter a certos academismos de algumas correntes musicais da virada do século XIX para o XX. Os orientalismos que se entreouvem em Shéhérazade não são, portanto, nem de longe, colorações exóticas. São caminhos de fuga, um meio de não se sujeitar mais ao sistema tonal, que já há muito tempo se mostrava ineficaz para a expressão musical.
Em 1903 Ravel entra em contato com o poeta Tristan Klingsor, pseudônimo de Léon Leclère (1874-1966), que tinha acabado de publicar, sob o título de Shéhérazade, uma coleção de poemas inspirados na narrativa árabe das Mil e Uma Noites e também na composição de Rimsky-Korsakov, da qual tanto Ravel quanto Debussy eram grandes admiradores. A partir desse contato, Ravel põe-se a musicar três dos poemas de Klingsor, a princípio concebidos para voz e piano, mas logo orquestrados no que veio a se tornar a sua própria Shéhérazade.
A riqueza rítmica da poesia de Klingsor, flexível e não condicionada a esquemas poéticos tradicionais, aliada à intensa imagética que ela cria, foram materiais perfeitos para um Ravel já descrente do sistema tonal, o que lhe permite, sem trauma, o uso de dissonâncias e sonoridades no mínimo originais!
Essas três grandes canções, de caráter reflexivo, foram concebidas para ter Asie como último movimento. No entanto, no momento da publicação, o compositor inverteu a ordem das canções, o que cria uma espécie de progressão, indo de um orientalismo quase voluptuoso a uma velada e terna sensualidade… Como a própria personagem da Scheherazada, nas Mil e uma Noites…
Composta no mesmo ano em que Ravel completa outra de suas obras-primas – o Quarteto de cordas – Shéhérazade pode não ser uma de suas obras mais populares, mas é uma de suas obras mais importantes. Ela foi estreada em 1904, na Société Nationale, cantada por Jeanne Hatto, tendo como regente ninguém menos que Alfred Cortot.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.