Vasily Kalinnikov
Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, cordas.
Injustamente negligenciada no Ocidente, a obra de Vasily Sergeyevich Kalinnikov guarda ainda um intocado frescor da vida musical russa do final do século XIX. Kalinnikov passou praticamente toda a sua existência em extrema pobreza, e as privações da infância e juventude abalariam para sempre sua saúde. Nascido na pequena cidade de Voina, no distrito agrário de Orel, no oeste da Rússia, aos dezoito anos, graças a uma bolsa de estudos, ingressou na Escola de Música da Sociedade Filarmônica de Moscou. Ganhava precariamente a vida tocando diversos instrumentos em orquestras da cidade e jamais pôde realizar o sonho de pagar os estudos no Conservatório.
Em 1892, impressionado com suas composições, Piotr Tchaikovsky recomendou o jovem ao posto de maestro assistente no Teatro Malïy. No ano seguinte assumiria o mesmo posto no Teatro Italiano de Moscou. Sua sorte parecia mudar, mas, com a saúde se deteriorando, Kalinnikov logo teve de se demitir dos teatros e procurar uma região mais quente para viver. Com apenas 27 anos, abandonava sua recém-iniciada carreira em Moscou e se transferia para a cidade de Ialta, na Criméia, onde viveria seus últimos anos. Debilitado pela tuberculose, Kalinnikov acharia ainda forças para compor, nesse período, suas mais belas obras.
Sergei Rachmaninov o visitou em Ialta, em 1900, e, sensibilizado pela miséria em que o encontrou, conseguiu-lhe um editor, mas Kalinnikov acabaria morrendo antes que alguma ajuda chegasse, aos 35 anos de idade. Com a sua morte, os manuscritos de Kalinnikov tiveram uma valorização súbita e a sua venda possibilitou, ao menos, que a viúva vivesse confortavelmente seus últimos anos.
Kruglikov, crítico musical em Moscou, amigo e ex-professor de Kalinnikov, encantando-se pela Sinfonia nº 1, enviara uma cópia a Rimsky-Korsakov, na época a personalidade musical mais importante da Rússia. O nacionalista Rimsky-Korsakov recusou-se a regê-la, curiosamente, por conter, no primeiro movimento, “uma melodia excessivamente russa”. Ao que tudo indica, a recusa se deveu ao fato de Rimsky-Korsakov e seus amigos de São Petersburgo, o célebre Grupo dos Cinco, cultivarem o hábito de rejeitar qualquer música vinda de Moscou. Comprometidos com o desenvolvimento de uma música verdadeiramente russa, os compositores de São Petersburgo eram hostis ao círculo musical de Moscou e a suas tendências “excessivamente germânicas”. A Sinfonia nº 1 de Kalinnikov, no entanto, parece produzir a fusão perfeita entre as duas principais correntes musicais russas do final do século XIX: de Moscou, lança mão do lirismo e de um certo refinamento orquestral inspirados em Tchaikovsky; de São Petersburgo, resgata a estruturação musical e o uso de material folclórico à moda dos compositores do Grupo dos Cinco, especialmente de Alexander Borodin (1833-1887). A obra foi estreada em Kiev, em 1897, pela Sociedade de Música Russa, sob a regência de Alexander Vinogradsky (1854-1912). A estreia foi um sucesso, e a obra foi imediatamente tocada em Moscou, Viena, Berlim, Paris e Londres, para logo depois, inexplicavelmente, cair no esquecimento.
Guilherme Nascimento
Compositor, Doutor em Música pela Unicamp, professor na Escola de Música da UEMG, autor dos livros Os sapatos floridos não voam e Música menor.