Sinfonia nº 10 em mi menor, op. 93

Dmitri SHOSTAKOVICH

(1953)

Instrumentação: 2 piccolos, 2 flautas, 3 oboés, corne inglês, requinta, 3 clarinetes, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas.

 

Na esteira do neoclassicismo inaugurado por Prokofiev, diversos compositores da então União Soviética despontam com maior ou menor brilho, como é o caso, por exemplo, de Katchaturian ou de Kabalevsky. No entanto, quase toda essa geração de compositores acaba frequentemente sucumbindo a uma espécie de “folclorismo”, em parte imposto pelas exigências do Partido Comunista, alheio às conquistas surpreendentes que lograram atingir, em outras regiões, um Bartók, um Manuel de Falla, um Janacek, ou mesmo, na Rússia, um Stravinsky como o de Les Noces.

 

Prokofiev não formou escola, mas tornou-se um modelo para os compositores soviéticos da geração que o sucedeu: foi o desbravador de um caminho de criação, sob as imposições do regime comunista, ao reabilitar a melodia e o contraponto, ao ampliar, em certo sentido, o próprio sistema tonal, e ao recuperar formas e procedimentos clássicos, sem abrir mão da modernidade. É abraçando abertamente esse modelo que emerge, do cenário soviético, Dmitri Shostakovich.

 

À música de Shostakovich foi injustamente atribuído um neorromantismo grandiloquente. Que se dirá, então, da música de Rachmaninov?! Na verdade, Shostakovich raramente escapa às formas, estruturas e procedimentos da tradição, nem a um sistema tonal já expandido e entremeado das subversões que Debussy, Ravel, Stravinsky e mesmo a Segunda Escola de Viena conseguiram elaborar. A Shostakovich não são estranhos a fuga, o prelúdio, a sinfonia, o quarteto de cordas, a forma sonata, as funcionalidades tonais, os acordes perfeitos. Mas sua música denota uma espécie de expressionismo até então raramente explorado, cuja dramaticidade surpreendente faz transcender quaisquer neoclassicismos e atingir essencialmente as elaborações artísticas e criativas mais legítimas.

 

Por isso mesmo é que ele optou pela reelaboração (em parte, bem pessoal) da tradição musical, não por comodismo, mas por encontrar nisso um meio conciliatório entre suas próprias necessidades criativas e as demandas do regime político a que estava submetido. Desse movimento surgem páginas impressionantes: os vinte e quatro prelúdios e fugas (em referência óbvia ao Cravo Bem Temperado de J. S. Bach) para piano, op. 87, a ópera Katerina Ismailova, a impressionante cantata A morte de Stenka Razin, o oitavo e décimo segundo quartetos de cordas (de um total de quinze) e a décima de suas quinze sinfonias.

 

No entanto, foi justamente por causa da escolha desse caminho conciliatório que ele foi denunciado duas vezes ao Partido Comunista (a primeira, em 1936, após a estreia da ópera Lady Macbeth, à qual estava presente Stalin, e a segunda em 1948), por compor uma música demasiado formalista e ocidentalizante, de base nitidamente não russa, que não atingia as massas proletárias. As consequências da segunda denúncia, para o compositor, foram funestas: a maior parte de suas obras foi banida, ele foi demitido de seu cargo no Conservatório de Leningrado e a maior parte dos privilégios de sua família foi cancelada. Somente em 1949, quando Stalin decidiu mandar representantes soviéticos para o Congresso para a Paz Mundial, em Nova York, é que essas medidas foram atenuadas e Shostakovich enviado entre os representantes.

 

A Décima Sinfonia é a primeira grande obra sinfônica do compositor criada após a segunda denúncia. Dela, encontram-se esboços que datam ainda de 1946, embora, de acordo com cartas do compositor, o ano de sua composição tenha sido 1953. Foi estreada em dezembro do mesmo ano, pela Orquestra Filarmônica de Leningrado, sob a batuta de ninguém menos que Yevgeny Mravinsky.

 

1953 também foi o ano da morte de Stalin. Por isso, alguns críticos consideram essa sinfonia um manifesto contrário ao regime stalinista. Isso é contestável. Até mesmo a fonte de onde se origina tal especulação é discutível: o Testemunho, obra publicada em 1979 e atribuída a Shostakovich, tem sua autoria largamente estudada e discutida. Daí a atribuição, por alguns, de um programa velado para a construção dessa obra. Isso, no entanto, se mostra irrelevante diante do resultado musical.

 

Mais interessante é notar que, na Décima Sinfonia, o compositor faz uso, como em outras obras suas, de um motivo melódico recorrente, alusivo de seu próprio nome: a sequência das notas ré, mi bemol, dó e si (que, na notação teutônica, tomariam as siglas DSCH). Esse motivo aparece, como elemento de unidade, transmutado ou explícito, no primeiro, terceiro e quarto movimentos.

 

Chame-se a atenção, ainda, para certas reminiscências mahlerianas do terceiro movimento, cujo aspecto dançante contrasta vivamente com o furioso e sincopado scherzo do movimento anterior.

 

O primeiro movimento dessa obra recupera o tema de uma de suas obras incidentais: o segundo de seus Quatro Monólogos de Pushkin, intitulado “que nome é o meu?”. Esse mesmo tema é retomado no terceiro e quarto movimentos.

 

Se alguns críticos posicionam, com certa razão, Shostakovich aquém das conquistas do século XX, ignoram seu gênio criativo. Sua Décima Sinfonia é testemunho dele.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

anterior próximo