Sinfonia nº 3 em Fá maior, op. 90

Johannes Brahms

(1883)

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tímpanos, cordas.

 

As sinfonias de Brahms foram concebidas sob o signo do paradoxo. Nelas, o compositor verte a alma romântica que perpassa sua extensa produção de canções, sem deixar de lado a missão que se impôs de dar seguimento à longa tradição sinfônica, representada por Schumann, Schubert e, em seu caso particular, por Beethoven. Se Brahms, como habitualmente se afirma, encontrava-se mais à vontade na composição de Lieder, é precisamente a conformidade à adoção de parâmetros formais clássicos que torna ainda mais notável sua produção sinfônica. Aqui, o universo da canção invade a sinfonia, agora sem palavras, fazendo ecoarem suas paixões, um raro humor, as respostas musicais às reflexões sobre a morte e um sem-número de manifestações de uma visão de mundo e modo de ser que merecem atenção, se não quisermos incorrer em imputar, ao autor de Ein Deutsches Requiem, o epíteto de neoclássico e outros rótulos simplificadores e restritivos. Se Brahms ama a concisão, o recolhimento, a gravidade, a introspecção, é precisamente seu recato diante dos arroubos românticos que valoriza e acentua sentimentos vistos por inteiro, a distância. Sua aproximação aos padrões formais clássicos não é acomodação, e não deve ser vista de fora. Brahms quase nada acrescenta ao efetivo orquestral beethoveniano, mas aprende a lição deste que, em cinco de suas sinfonias, emprega a orquestra de Haydn, mas o faz com um espírito único, integrador da ideia musical e de sua orquestração. Mais ainda, Beethoven busca, a cada nova obra, recriar a Sinfonia, dando-lhe vida e personalidade próprias. Brahms procede de modo semelhante. Suas quatro sinfonias não representam números a mais: são criações individuais, fruto de uma elaboração longa e cuidada. Sua orquestra explora uma técnica instrumental em desenvolvimento, como podemos observar nesta Terceira Sinfonia, levando os violinos ao registro extremo-agudo, ou dando relevo, como no terceiro movimento, a melodias entregues às trompas. Além disso, em diversas passagens, a orquestração de Brahms mostra uma rara habilidade na transposição de uma escritura pianística. Nesse sentido, podemos salientar os arpejos, distribuídos entre as cordas, no início do terceiro movimento ou, no segundo, após o primeiro fortíssimo, o acompanhamento, também nas cordas, que faz pano de fundo para o retorno da melodia inicial.

 

Do ponto de vista da linguagem musical, Brahms se afasta do percurso apontado pelos arautos de uma nova música – naquele momento representados por Liszt e Wagner. Apontado por Hans von Bülow como o terceiro B da música germânica, ao lado de Bach e de Beethoven, Brahms viu seu nome indissoluvelmente ligado à tradição, e o discurso que poderia ser um elogio foi um passo para a associação de seu nome a posicionamentos estéticos conservadores, associação de que se valeram os detratores do compositor. No entanto, uma necessária reavaliação do lugar que Brahms ocupa na História da Música logo se fez notar já nos primeiros decênios do século XX. Ao falar dos caminhos para a composição musical na Segunda Escola de Viena, Webern chama atenção para complexidades das relações harmônicas em Brahms, exemplificadas com o final de Parzenlied, op. 89, e ressalta o fato de que sua escolha não recaiu em alguma obra wagneriana. Alban Berg mostra, em sua Sonata em si menor, o quanto deve à escritura pianística de Brahms. Mas é Schoenberg que, ao falar de seu próprio percurso composicional, ressalta o aprendizado com a obra brahmsiana. Aponta, inclusive, alguns traços distintivos, possíveis de ser detectados na Terceira Sinfonia: “a irregularidade do número de compassos” – presente, após os dois acordes de abertura dos sopros, já no primeiro tema, que, além disso, está em compasso binário composto e sua resultante rítmica é em compasso ternário simples –; a peculiaridade de “não regatear, não economizar quando a clareza exige mais espaço e levar cada figura às suas últimas consequências” – como podemos constatar pelos processos de desenvolvimento temático e pela presença e transformações do mesmo tema inicial, ao longo do primeiro movimento e por seu retorno, com nova textura, para a conclusão da Sinfonia.

 

Para o ouvinte, esta Terceira Sinfonia apresenta inúmeras outras particularidades possíveis de serem observadas, mesmo em uma primeira audição. Chama atenção, por exemplo, o fato de que todos os movimentos terminam em dinâmicas suaves. Por outro lado, impossível não apreciar a cantilena singela que abre o segundo movimento, ou mesmo não reter a melodia de abertura do terceiro. Melodias que, diga-se de passagem, exemplificam um dos aspectos mais ricos e pregnantes das obras de Brahms, ao lado de uma orquestração que alterna passagens em tutti e em meias-tintas. A forma fica apenas como referência. O todo da composição fica como um testemunho do rigor que, paradoxalmente, não impediu o exercício da liberdade.

 

Oiliam Lanna
Compositor e regente, Doutor em Linguística (Análise do Discurso), professor da Escola de Música da UFMG.

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