Gustav MAHLER
(1893/1896)
Instrumentação: 2 piccolos, 4 flautas, 4 oboés, corne inglês, 2 requintas, 3 clarinetes, clarone, 4 fagotes, contrafagote, 8 trompas, post horn, 4 trompetes, 4 trombones, tuba, 2 tímpanos, percussão, 2 harpas, cordas.
As sinfonias de Mahler, de cunho fortemente autobiográfico, não falam apenas de seu criador. Elas representam, sobretudo, o mergulho em um terreno de comunhão, acima das idiossincrasias do compositor, e nos trazem à memória nossas próprias angústias, aflições, mas também nossas alegrias e deslumbramentos diante da Vida e da Natureza.
Na Terceira Sinfonia, de modo particular, Mahler transcende as vicissitudes do destino humano e busca além. Parece mesmo, qual Prometeu, desafiador, perscrutar os mistérios da Criação. Diferentemente das duas primeiras sinfonias – Titã e Ressurreição –, a Terceira teve como ponto de partida um “programa” que, após diversas alterações, associa-se aos seis movimentos da obra.
O primeiro movimento refere-se às forças telúricas. Após uma seção introdutória (o despertar de Pã), a música festeja a “entrada do verão” (o cortejo de Baco). É um movimento longo, cuja dimensão fez com que o compositor dividisse a Sinfonia em duas grandes partes, ficando a segunda para os cinco movimentos restantes. Uma sucessão de indagações serve de base para os cinco movimentos seguintes: um Minueto (O que me dizem as flores do campo), um Scherzo (O que me dizem os animais da floresta), dois movimentos encadeados sem interrupção (O que me dizem os homens e O que me dizem os anjos), culminando na indagação final (O que me diz o amor).
O cenário do primeiro movimento é descortinado por uma chamada de oito trompas, prenúncio da importância que a marcha irá desempenhar ao longo desta forma sonata expandida. A marcha é, com as mais diversas expressões – solene, heroica, marcha militar, de inspiração folclórica, fúnebre –, um dos arquétipos da música de Mahler, mas a última dessas expressões (fúnebre) está ausente desta Sinfonia que celebra a vida.
Além da marcha, materiais temáticos com algum grau de semelhança percorrem as sinfonias de Mahler, como, nesse início, o paralelo com o tema que abre o último movimento da Quarta Sinfonia de Brahms. Essa capacidade de integração, relacionada às suas próprias obras e à tradição clássico-romântica (com a qual Mahler tinha contato estreito através de sua atividade como regente), evidencia-se ainda no agenciamento de estruturas musicais contrastantes, ao longo da Terceira Sinfonia. É o caso, por exemplo, da longa seção de abertura – solene, dominada pelas intervenções temáticas dos metais, alternadas com pontuações soturnas, percussivas; como do parêntese de leveza das madeiras – que anunciam um primeiro solo desse naipe (no oboé) e também das cordas (violino) e, na sequência, do solo de trombone – apoiado pelas mesmas pontuações rítmicas. O contraste acentua-se com a atmosfera da marcha que se segue, com seu forte apelo de alegria e jovialidade. Mahler, no entanto, integra os diversos materiais, superpondo-os, submetendo-os a transformações de toda ordem, de tal forma que atinge unidade, apesar da diversidade desses elementos.
É novamente o contraste que causa surpresa logo no início do movimento seguinte. Para as flores, Mahler escolhe um Minueto, com todas as suas conotações de graça e leveza. Poderíamos, aqui, pensar numa atmosfera de certo classicismo, mas que logo adquire outros tons, com os episódios vivos que o compositor coloca entre as sempre variadas apresentações dos passos iniciais dessa dança. O início do Scherzo ocorre como continuidade da ambiência do Minueto, sem ruptura. Mahler, na primeira seção, parafraseia uma de suas próprias canções – Ablosung im Sommer, do ciclo Wunderhorn. A cena se passa com alusões a cantos de pássaros, e a densidade do fervilhar de efeitos orquestrais não deixa de dar lugar às transparências. Digno de nota, o Trio, com sua trompa de postilhão colocada fora do palco, instaura um dos momentos únicos nas sinfonias mahlerianas – pura poesia, alusão ao longínquo que o toque desse instrumento desperta.
Para o quarto movimento, Mahler nos reserva um clima de profunda doçura, que acompanha a reflexão do Zaratustra de Nietzsche. A noite profunda interroga, e o homem, em seu íntimo, anseia pela eternidade. As terças paralelas das trompas dão o tom do afastamento necessário à reflexão. Impossível não especular que, ao escrever O Solitário no Outono, uma das canções de sua derradeira obra – A Canção da Terra –, Mahler possa ter-se lembrado da voz do canto – suave e penetrante –, como dos efeitos das cordas no registro grave, das oscilações tônica-dominante dos violoncelos e dos chamados de oboé desse quarto movimento.
Sem interrupção, o movimento seguinte, embora breve, emprega, além da voz solista, um coro feminino e um coro de vozes de crianças. Este evoca sons de sinos que, ao lado da vivacidade rítmica da orquestra e da leveza do coro feminino, tem algo de primavera, respondendo ao verão do movimento inicial. Seguindo o sentido do texto, a atmosfera da seção central é contrastante, antes de uma conclusão surpreendente.
Finalmente, para o sexto movimento Mahler nos reserva uma meditação à altura do movimento lento da Nona Sinfonia de Beethoven. Agora, as cordas têm seu momento principal. Serenidade, ascese mais que meditação, esse é o momento que parece dar sentido e resumir a longa busca desta Terceira Sinfonia – através dos mistérios da Criação, saciar sua sede de Eternidade.
Oiliam Lanna
Compositor e regente, doutor em Linguística (Análise do Discurso), professor da Escola de Música da UFMG.
Olho:
(…) Agora, as cordas têm seu momento principal. Serenidade, ascese mais que meditação, esse é o momento que parece dar sentido e resumir a longa busca desta Terceira Sinfonia – através dos mistérios da Criação, saciar sua sede de Eternidade.