Sinfonia nº 38 em Ré maior, K. 504, “Praga”

Wolfgang Amadeus MOZART

(1786)

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpanos, cordas.

 

No final de 1786, Mozart concluiu duas peças magistrais – o Concerto para piano nº 25 e a Sinfonia nº 38 –, obras em que a densidade do pensamento musical e o pleno domínio dos recursos composicionais sinalizam o derradeiro período criativo do compositor. Ambas destinavam-se ao público de Praga e apresentam a particularidade de não usar clarinetes (instrumento muito querido de Mozart, mas com os quais, ao que parece, ele não contaria na orquestra de Praga).

 

O consagrado rótulo de Sinfonia de Praga se presta, portanto, muito bem à obra, homenageando a cidade tão amada pelo compositor e onde sua música era acolhida com entusiasmo. O sucesso triunfal de As bodas de Fígaro no teatro local contrastara com a fria recepção da estreia vienense. Confiante no caloroso público tcheco, Mozart não precisou fazer concessões: a composição da nova Sinfonia marca um nítido salto qualitativo em sua criação sinfônica. E, mais uma vez, Praga mostrou apreciar as inovações, encomendando-lhe uma nova ópera. E, de fato, há vários episódios no Don Giovanni que lembram trechos da Sinfonia de Praga. No primeiro movimento da Sinfonia, o clima do grande Adagio introdutório se assemelha ao da música que, na ópera, acompanha a estátua vingativa do Comendador. Mozart utiliza a mesma figuração dos pesados passos do Convidado de Pedra. Essa introdução, de dimensão incomum, possui solidez e unidade notáveis.

 

A música da transição para o Allegro seguinte é quase exatamente a do sexteto do segundo ato de Don Giovanni. Além disso, o começo do próprio Allegro lembra a Abertura da ópera. Todo esse primeiro movimento da Sinfonia apresenta a particularidade de ser construído sobre breves motivos (ao contrário dos habituais amplos temas de Mozart), procedimento que já foi interpretado como uma homenagem a Haydn. A instrumentação revela o domínio magistral da paleta orquestral, exibindo rica variedade de recursos tímbricos. Notáveis também são os efeitos polifônicos e a naturalidade com que se tecem proezas contrapontísticas, quando ideias temáticas reaparecem entrelaçadas com suas próprias imitações ou associadas a novas figurações.

 

O segundo andamento (Andante) apresenta uma sequência de melodias. A primeira, introduzida pelos primeiros violinos, reaparece logo a seguir em uma variante, na flauta e no fagote. No terceiro desenho melódico, cordas e sopros dialogam. O desenvolvimento emprega modulações que embelezam o tema inicial com seu variado colorido.

 

O terceiro movimento (Presto) descreve uma estonteante trajetória, repleta de animação, força e vitalidade. Constrói-se, sobretudo, sobre um primeiro tema, inicialmente apresentado pelo quarteto das cordas e retomado, com caráter irônico, pela flauta, o oboé e o fagote. Tal tema vem diretamente de uma cena cômica de As bodas de Fígaro, referente ao personagem Cherubino. Mozart termina assim a Sinfonia de Praga, demonstrando brilhantemente sua capacidade inigualável de realizar a representação teatral também na música instrumental.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado.

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