Igor STRAVINSKY
Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 3 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, piano e cordas.
Já é quase costume dizer que se podem notar, no início do século XX, duas grandes tendências nos processos de criação musical: uma de orientação continuísta e, a outra, de orientação revolucionária. À primeira, associam-se os nomes dos integrantes da Segunda Escola de Viena (Schoenberg, Webern e Berg), cujos caminhos, abertos pelo cromatismo wagneriano, levam ao esfacelamento e à desintegração do Sistema Tonal. Na segunda tendência, mencionam-se quase sempre os nomes de Debussy e Stravinsky. Por demasiado simplificadora que seja essa abordagem, ela revela, realmente, caminhos significativos que o século XX percorre no campo da criação musical e que trazem em comum um ponto substancial: o abandono, de uma forma ou de outra, do Sistema Tonal, que já não se mostra suficiente para as necessidades expressivas do homem contemporâneo. A dissonância se liberta, o timbre e a rítmica adquirem nova dimensão em sua significação e a forma musical começa a ser abordada menos em estruturas preestabelecidas que por uma “gestalt” gerada pela própria obra.
Se os compositores da Segunda Escola de Viena fundaram uma “Escola”, Debussy e Stravinsky, porém, não deixaram seguidores. No entanto, sua influência e a de suas linguagens foram decisivas para as principais correntes do século XX que os sucederam (e o são até hoje). Desde suas primeiras obras (O pássaro de fogo, Petrushka, A sagração da primavera), Stravinsky ao mesmo tempo deslumbra e causa assombro. No plano harmônico, seguindo a esteira antes inaugurada por Debussy, os agregados sonoros sem qualquer ligação com o Sistema Tonal são amplamente empregados. Ao mesmo tempo ele não hesita, por vezes, em recuperar elementos tonais, ora sobrepondo-os, ora usando-os sem mascaramentos, mas inseridos de tal forma em contextos inauditos, que acabam por criar uma sensação de ambiguidade que relativiza sua própria natureza. Na rítmica, a originalidade da técnica e a assimetria audaciosa e perturbadora subvertem o sentido de causalidade da métrica tradicional. Mas é sobretudo no campo da forma musical que ele é realmente revolucionário. Em poucas palavras, se na harmonia ele não procura reformar nem fazer ruir totalmente o Sistema Tonal, Stravinsky é, usando de uma metáfora, “atonal” na forma.
Há quem sugira dividir em quatro fases a sua obra e sua linguagem: até 1914, as obras-primas dos primeiros balés. De 1914 a 1922, obras com pequenas formações instrumentais, cuja linguagem é mais voltada para a textura contrapontística que a harmônica (é desse período a genial História do soldado). De 1922 a 1953, um olhar que se volta para a herança da Tradição Ocidental, em que se notam tendências neoclássicas. De 1953 até sua morte, em 1971, Stravinsky adota certa postura reacionária, fazendo frente às investidas ousadas de seus contemporâneos e usando técnicas do Serialismo em seus processos de composição.
A Sinfonia em três movimentos pertence à terceira dessas fases, junto com outras obras de grande significado: a Sinfonia dos salmos (composta em 1930), a Sinfonia em Dó (1940), Orpheus (balé composto em 1947) e a Missa (que data de 1951). Dessas obras, apenas a primeira não foi composta em solo norte-americano. Stravinsky toma residência em Beverly Hills desde 1940 – a quinze quilômetros de onde morava Schoenberg! – e em 1945 se naturaliza cidadão estadunidense.
Encomendada pela Philharmonic Symphony Society de Nova York, a Sinfonia em três movimentos foi concluída em 1945 e estreada em janeiro do ano seguinte, pela Orquestra Filarmônica de Nova York, sob a regência do próprio compositor. Nessa obra, como em outras desse período, Stravinsky lança um olhar para o passado musical do Ocidente, não, porém, com a intenção de reconstituí-lo ou restaurá-lo, mas talvez numa tentativa de “chamada à ordem”, de sua própria linguagem, até então fundamentada em investidas espantosamente originais e arrojadas. Nesse caminho neoclássico, contudo, Stravinsky nunca deixa de ser Stravinsky. Sobretudo na rítmica e no trabalho tímbrico das orquestrações dessa fase, seu gênio inventivo permanece vigoroso. Além disso, podem-se ouvir, na Sinfonia em três movimentos, materiais de obras anteriores: os ostinatos e acentos deslocados do terceiro movimento, por exemplo, parecem evocar trechos d’A sagração da primavera. Ademais, a reorganização de materiais de obras não concluídas também foi fonte para a elaboração dessa sinfonia: a presença evidente do piano no primeiro movimento vem provavelmente de um projeto inacabado de um concerto para piano. A harpa é posta em relevo no segundo movimento, mas, no terceiro, ambos são tratados em mesmo grau de importância.
Stravinsky se referia a essa obra como a sua “Sinfonia da Guerra” e a considerava como uma espécie de reação aos eventos da Segunda Guerra Mundial. Embora revele um Stravinsky menos provocador, se comparado ao da Sagração, essa obra não deixa de trazer a marca desse artista cuja obra ajudou a definir os rumos da Música Ocidental a partir do século XX.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.