Bachianas Brasileiras nº 8

Heitor VILLA-LOBOS

Na vasta obra de Villa-Lobos, as séries dos Choros e das Bachianas Brasileiras se destacam pela merecida popularidade. Esteticamente, sinalizam caminhos diversos para o nacionalismo do compositor. Os Choros, compostos na década de 1920, demonstram sua preocupação com a Modernidade, enquanto as Bachianas, compostas entre 1930 e 1945, referenciam, na figura de Bach, a tradição da música ocidental. O contato de Villa-Lobos com o cânone musical europeu começou cedo – seu primeiro professor de música foi o pai, homem de grande cultura, que incentivou o filho de seis anos a tocar violoncelo, clarinete, piano, além de levá-lo a ensaios de orquestra, concertos sinfônicos e óperas. Ainda no ambiente familiar, tia Zizinha, pianista amadora, teve grande influência na formação musical do menino. Villa-Lobos gostava de ouvi-la tocar obras de Bach, principalmente O Cravo bem Temperado.

 

Mas o Rio de Janeiro era a capital dos “chorões” e, após a morte prematura do pai, Villa-Lobos, a partir dos dez anos, livre da censura paterna, deixou-se fascinar pelo popular violão (instrumento associado à boemia, proibido nas salas de concerto). Tornou-se amigo do seresteiro Zé do Cavaquinho, hábil instrumentista, figura altamente conceituada entre os “chorões”. (A amizade com o “capadócio” foi duradoura: anos mais tarde, Zé do Cavaquinho seria funcionário do Conservatório de Canto Orfeônico, organizado e dirigido pelo compositor).

 

Na década de 1910, Villa-Lobos reuniu muito material folclórico. Engajado em uma orquestra mambembe de operetas, viajou pelas capitais litorâneas até o Recife. Depois, na companhia do amigo Donizetti (pianista, saxofonista e grande boêmio), empreendeu, de Fortaleza a Manaus, uma fascinante aventura musical, à procura das vozes da natureza e dos habitantes da região. Orgulhoso desse aprendizado, o compositor gostava de afirmar que seu principal Livro de Harmonia fora o mapa do Brasil. Contudo, em sua obra dessa fase, são perceptíveis, também, fortes influências de modelos europeus como Wagner, Puccini, Vincent d’Indy e Debussy.

 

Em 1923, Villa-Lobos dava novo passo importante em sua carreira, trocando o Rio de Janeiro por Paris, a metrópole das vanguardas artísticas. Na voga de “exotismo selvagem” que dominava a capital francesa, os traços de primitivismo e energia telúrica presentes em sua música foram comparados às então recentes ousadias de Stravinsky e outros ícones da modernidade. Chamado por Florent Schmitt de néo-sauvage, Villa-Lobos aceitou o epíteto com prazer e deixou circular inverossímeis estórias sobre sua convivência junto a tribos indígenas, em perigosíssimas viagens pelas selvas brasileiras. Assumindo o papel de “compositor dos trópicos”, Villa-Lobos normatizou sua estética nacionalista, sob a premissa de que a verdadeira música brasileira formara-se nos ambientes populares – indígenas, folclóricos, rurais ou urbanos. Por outro lado, soube avaliar o potencial dessa música como contribuição singular para o panorama musical internacional, associando-a aos procedimentos composicionais eruditos característicos do século XX.

 

De volta ao Brasil, em 1930, Heitor Villa-Lobos exerceu uma atividade abrangente no cenário musical do país, desdobrando-se em múltiplas tarefas – estímulo ao ensino musical, criação de grupos de canto coral, organização e regência de concertos. E continuava compondo muito. As nove Bachianas Brasileiras foram escritas entre as vicissitudes das duas grandes guerras, época da ascensão política dos Estados totalitários. Nas artes, houve grandes desvios nos rumos das vanguardas do início do século, que agora substituíam a irreverência, as inovações e as ousadias das décadas anteriores por uma tendência à institucionalização. Esse retorno à ordem corresponde à “fase neoclássica” de artistas cuja fama inicial associara-se a escândalos iconoclastas. No neoclassicismo de suas Bachianas, Villa-Lobos procura afinidades entre alguns procedimentos musicais brasileiros e a música do grande gênio alemão. Assim, os movimentos das Bachianas trazem, geralmente, dois títulos: um que remete às formas barrocas e outro, bem nacional, seresteiro, sertanejo.

Cada uma das nove bachianas destina-se a um conjunto instrumental diferente. A Bachianas nº 8 requer grande orquestra e um papel importante é confiado à percussão. Divide-se em quatro movimentos. O Prelúdio possui um prolongado tema que contrasta com ritmos regionais brasileiros. A Ária, com seu subtítulo “Modinha”, é uma canção sentimental impregnada de melancolia, com expressivo tema no violoncelo e acompanhamento das demais cordas. A segunda parte da ária traz novo motivo, na forma de um “dobrado”, adaptação brasileira do paso-doble, marcha de origem espanhola. O espírito da modinha retorna com outro tema, vago e profundamente lírico. A Toccata assume o ritmo da “Catira batida”, dança ligeira que se assemelha à giga europeia. A segunda metade apresenta uma melodia cantabile, mas o caráter de toccata persiste no acompanhamento pizzicato dos violoncelos. A Fuga, caracterizada por ritmo bem nacional, poderia trazer o subtítulo brasileiro “Conversa”, como as fugas de outras Bachianas. O próprio Villa-Lobos regeu a estreia dessa peça, a 6 de agosto de 1947, em Roma.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

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