Sinfonia “Matias, o pintor”

Paul HINDEMITH

(1933/1934)

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas

 

Filho de um humilde pintor de casas morto na Primeira Guerra Mundial, Paul Hindemith desde a infância revelou surpreendentes aptidões musicais. Tocava vários instrumentos e dedicou-se com empenho às matérias teóricas. Aos vinte anos, tornou-se primeiro violino da Ópera de Frankfurt e, em seguida, seu regente principal. Músico completo em abrangentes aspectos de sua arte, Hindemith deixou obras em vários gêneros. Fundador e integrante do Quarteto Amar, durante toda a sua vida será um notável virtuose da viola. Como pedagogo, influenciou toda uma geração de compositores e publicou livros didáticos, amplamente difundidos, sobre os fundamentos musicais e harmonia. Teórico apaixonado, em seu célebre tratado de composição e de sintaxe musical (Unterweisung im Tonsatz) procurou estabelecer uma teoria capaz de analisar satisfatoriamente tanto as múltiplas técnicas composicionais contemporâneas quanto a música do passado.

 

Após a Primeira Guerra, já bastante conhecido como pedagogo e teórico, Hindemith começa a se impor como compositor. Embora então considerado iconoclasta e antirromântico, permanece firmemente vinculado às estruturas formais tradicionais, mesmo quando se deixa inspirar no jazz ou no canto popular alemão. Sua linguagem, altamente característica (e menos efetiva nas mãos de muitos imitadores), busca uma síntese entre os ideais neoclássicos e a pesquisa de novas sonoridades. Na década de 1920 torna-se partidário do movimento a favor da “música utilitária” (Gebrauchsmusik) e, com o objetivo prático de preencher a lacuna existente no repertório solo para alguns instrumentos da orquestra, escreve um conjunto de sonatas, cheias de vitalidade, para duo de piano e sopros.

 

Com a chegada dos nazistas ao poder (1933), Hindemith radicalizou sua opção estética, pautada sobre princípios morais humanísticos. Dedicou-se à composição de uma ópera sobre a vida do pintor gótico Mathias Grünewald (1475-1528), que retratou os horrores, os sofrimentos e os conflitos de sua época, marcada pela Guerra dos Camponeses (1524) no Sul da Alemanha. Embora o pintor fosse o personagem principal da ópera, o tema central era a vocação do artista, a revolta contra a autocracia e a defesa do liberalismo germânico. Diante da ascensão do fascismo europeu, Hindemith propunha uma reflexão sobre as relações entre o artista e a sociedade, à luz dos eventos políticos. A ópera foi considerada conceitualmente perigosa (por “perverter da maneira mais vil a música alemã”) e sua proibição na Alemanha causou acirrada batalha político-musical. Hindemith viu-se abandonado por vários colegas, intérpretes e compositores, enquanto, corajosamente, o maestro Wilhelm Furtwängler (da Filarmônica e da Ópera de Berlim) tomava sua defesa. A estreia só aconteceu em 1938, na Suíça, com grande repercussão.

 

Hindemith abandona a Alemanha. Durante uma estada na Turquia, organiza um plano estatal de ensino musical e, em 1940, instala-se nos Estados Unidos, como professor da Universidade de Yale. Volta à Europa em 1953, para lecionar na Universidade de Zurique (depois de recusar o cargo de diretor da Hochschule de Berlim) e, até sua morte, continua o intenso trabalho de regente, professor e teórico, sem nunca deixar de compor.

 

Enquanto compunha a ópera sobre Mathias Grünewald, o compositor escolheu, para criar uma sinfonia de mesmo título, três cenas correspondentes ao célebre tríptico do altar-mor da igreja de Santo Antônio de Isenheim, em Colmar (Alsácia), obra significativa do exaltado e comovente misticismo do pintor. A sinfonia estreou em 1934 (antes da interdição da ópera), em Berlim, sob a batuta de Furtwängler. Sua linguagem privilegia as tradições do canto gregoriano e do Volkslied (o canto popular alemão). Os movimentos trazem títulos correspondentes aos painéis do retábulo:

O primeiro movimento – Concerto de anjos – retrata a Natividade, com anjos instrumentistas adorando o Menino e sua Mãe. Um sorridente e luminoso anjo louro toca viola da gamba e a atmosfera é de radiante felicidade. Na lenta introdução, os trombones citam o coral popular Três anjos cantam uma doce melodia, antecedendo o allegro de sonata em que predominam ritmos dançantes.

O segundo quadro – Descida ao túmulo – mostra Cristo tombando pesadamente da cruz, tendo aos pés as figuras angustiadas das duas Marias e de dois discípulos. Verdadeira marcha fúnebre, na qual um oboé e depois uma flauta, sobre surdos pizzicati, lamentam e choram com infinita tristeza.

O terceiro movimento – A tentação de Santo Antônio – é o mais longo e também o mais agitado, como o quadro que o inspirou. Em um pesadelo, Matias se vê sob as feições de Santo Antônio, atormentado por pássaros fantásticos, répteis e demônios. No céu, Deus é representado no momento em que envia o anjo para salvá-lo. A parte central corresponde ao encontro de Antônio com o santo eremita que vem lhe trazer conforto. O pintor, após tantos tormentos psicológicos, enfim é salvo. E a obra termina com a vitória do Bem sobre o Mal – as madeiras se impõem sobre as cordas, com a citação do hino-coral Lauda, Sion, Salvatorem de São Tomás de Aquino. Segue-se, com toda a potência dos metais, o Alleluia conclusivo, coroação da obra em louvor aos grandes valores humanos.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras pela PUC Minas, professor na Universidade do Estado de Minas Gerais, autor do livro Músico, doce músico.

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