Henri DUTILLEUX
Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 3 trompas, 2 trompetes, 2 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, celesta, cordas.
Fruto de um trabalho persistente e de qualidade excepcional, a produção de Dutilleux impõe-se entre as principais da música contemporânea, tanto para a crítica mais tradicionalista como para as vanguardas. Seu catálogo, pouco numeroso, é composto de obras-primas, cada uma delas meticulosamente pensada e cinzelada com refinamento. Entretanto, sua recepção ocorreu lentamente – talvez pelo temperamento independente e recluso do compositor, que sempre se negou a participar de movimentos e grupos estéticos. Em 2005, aos 89 anos, Dutilleux tornou-se o terceiro compositor francês (após Olivier Messiaen e Pierre Boulez) a receber o cobiçado prêmio Ernst von Siemens, pelo conjunto de sua obra.
Aos dezessete anos, incentivado pelo avô materno, organista e professor de música, Dutilleux ingressou no Conservatório de Paris, onde obteve os primeiros prêmios de Harmonia, Contraponto e Fuga. Em 1938 ganhou o Prêmio de Roma, mas ficou poucos meses na Villa Médicis (o Prix de Rome era uma bolsa de estudos concedida por concurso a jovens compositores franceses que passavam um período compondo, hospedados na Vila Médicis, sede da Academia da França, em Roma). Embora continuasse compondo regularmente, só em 1948 publicou seu opus 1 — a Sonata para Piano — após ter destruído suas composições anteriores. O cargo de diretor das Ilustrações Musicais da Radiodiffusion Française lhe permitiu, por dezoito anos, um convívio enriquecedor com diversas tendências artísticas. Em 1961, a convite de Alfred Cortot, lecionou Composição na École Normale de Musique e, entre 1970 e 1984, no Conservatório de Paris.
Para Dutilleux, o processo criador pode transformar-se em um ritual, uma forma de cerimônia religiosa, pois implica uma epifania – quando uma ideia se revela luminosa e, por algum segredo, se impõe sobre as outras. Convivendo, assim, com o sagrado, o mistério, a magia, o artista prioriza a emoção e cultiva a curiosidade pelo inusitado. No plano técnico, Dutilleux valoriza o trabalho artesanal, “se possível diário”, com a preocupação de inserir o pensamento musical em uma estrutura bem definida (ainda que contrária a qualquer organização pré-fabricada). Como norma, adota “a necessidade absoluta da escolha e da economia dos meios, sempre visando o que se pode chamar a Alegria do Som”.
A grande sensibilidade harmônica, a busca de novos recursos expressivos e o gosto detalhista de sua orquestração fazem de Dutilleux um herdeiro direto da tradição de Dukas, Debussy e Ravel. Outras influências para sua música incluem obras literárias ou pictóricas que lhe servem frequentemente de fonte poética, embora o compositor se declare avesso a qualquer vestígio de “mensagem” ou “programa”. Assim, ao dar o subtítulo de “A noite estrelada” para a obra Timbres, Espaço e Movimento (1978), Dutilleux não tentou “reproduzir” sonoramente a pintura homônima de van Gogh, “apenas reviver e prolongar suas ressonâncias oníricas”. No caso dos concertos, as fontes são literárias. O Concerto para violino, “L’arbre des songes” (1985) é uma meditação sobre o silêncio, o tempo e a memória, musicalmente traduzida em um estudo da percepção de estratos temporais múltiplos, conceito elaborado pelo compositor após a leitura de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust.
Quanto ao Concerto para Violoncelo e Orquestra, Dutilleux inspirou-se em Les fleurs du Mal de Baudelaire. Inicialmente a ideia surgira para um balé solicitado pelo Ministério Francês dos Assuntos Culturais. O projeto oficial não se efetivou, mas, fascinado pelo universo do poeta, o compositor não renunciou à sua inspiração. Quando o amigo e legendário violoncelista russo Mstislav Rostropovitch lhe encomendou um concerto, Dutilleux o escreveu sobre o conceito baudelairiano de “evasão”. Em As flores do Mal, para se curar do doloroso tédio (o spleen) inerente à vida humana, o poeta recorre sucessivamente à Poesia, ao Amor, à contemplação da cidade, à comunhão com seus semelhantes, aos paraísos artificiais dos vícios e até à magia negra, ao fascínio do Mal. Todas essas tentativas se mostram inúteis, e as possibilidades terrestres esgotadas. Resta ao poeta a Evasão, a grande viagem para outro mundo, à procura do Desconhecido – “Tout un monde lointain”, Todo um mundo distante.
O concerto divide-se em cinco partes, alusivas aos versos de Baudelaire:
Enigma – Na natureza estranha e simbólica…
Olhar – O veneno que escorre dos teus olhos, dos teus olhos verdes, lagos onde minha alma treme e se vê ao avesso.
Marulho, ondas – Você contém, mar de ébano, um resplandecente sonho de velas, de remadores, de flâmulas e de mastros.
Espelhos – Nossos dois corações serão amplas tochas que refletirão suas luzes duplas nos nossos dois espíritos, esses espelhos gêmeos.
Hino – Guarde os teus sonhos, os sábios não os têm tão belos quanto os loucos.
A obra, introspectiva e secreta, não apresenta os convencionais diálogos entre a orquestra e o solista, característicos da forma concertante. O violoncelo identifica-se com o poeta e serve-lhe de guia, em sua busca de evasão, conduzindo-o através de fantásticas paisagens orquestrais, luminosas ou noturnas. Valendo-se de seus recursos virtuosísticos, percorre caminhos sinuosos por um mundo sonoro inusitado, lírico e fascinante.
O concerto foi estreado por Rostropovitch em julho de 1970, no Festival de Aix-en-Provence, com a Orquestra de Paris regida por Serge Baudo.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Professor da Escola de Música da UEMG, autor do ensaio Músico, doce músico