Heitor VILLA-LOBOS
Um dos principais “nortes ideológicos”, por assim dizer, do Modernismo no Brasil foi a preocupação engajada em se construir uma identidade artística nacional. Nessa direção, a valorização de um imaginário autóctone e a incorporação de seus elementos funcionaram como possibilidades reais de expressividade artística. No entanto, a estética modernista não ignorou conquistas estéticas dos movimentos das vanguardas europeias, que poderiam ser usadas (como de fato foram), conforme fossem convenientes, num movimento que Oswald de Andrade batizou, com irônica propriedade, de “Antropofagia”. Se, por um lado, essa ideologia estética pode ter provocado excessos “verdeamarelistas”, por outro lado, porém, é fato e certo que a arte brasileira (tanto a Literatura, quanto as Artes Plásticas e a Música) saiu renovada do Modernismo e soube aproveitar bem a herança que ele deixou.
Ícone maior da Música Nacional Brasileira, Heitor Villa-Lobos foi o grande representante, na música, da Semana de 1922 e sua fase produtiva, de rara prodigalidade, contempla, pelo menos, as duas primeiras fases do Modernismo Brasileiro. Não se nota, porém, em sua obra, uma linha evolutiva como a que comumente se traça para a arte no Brasil a partir da “Semana”, especialmente para a Literatura. Isso demonstra um pouco da independência vigorosa de seu espírito criador, que não se deixa prender a rótulos ou a tendências impositivas, mas que deles faz uso, quando assim convém às suas necessidades expressivas. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que Villa-Lobos, transcendendo o próprio Modernismo, assume uma postura verdadeiramente “antropofágica”. Sua linguagem transita numa mediação de rara originalidade entre as conquistas (formais e sonoras) mais arrojadas das tendências europeias de então, entre elementos da música popular brasileira e entre os elementos de nosso folclore musical. Embora não seja rara a citação de temas populares ou folclóricos em sua obra, a aderência de sua música ao elemento nacional não se limita nem de longe a isso: Villa-Lobos destila sua própria linguagem de todas essas fontes, criando um idioma original, pessoal e próprio, donde se depreende, dentre outras coisas, esse mesmo elemento nacional. Nesse sentido, ele não se sente constrangido, por exemplo, em se afastar da tonalidade nem, paradoxalmente, em revisitar, à sua maneira, a tradição musical do Ocidente. É esse último aspecto que se pode observar com clareza nas nove Bachianas Brasileiras, compostas entre 1930 e 1945. Nessas obras (cujos nomes fazem referência direta a J. S. Bach, expoente máximo do Barroco Alemão e ícone da música barroca), Villa-Lobos não pretende recuperar as estruturas ou elementos formais e estéticos da obra bachiana. Ao contrário, deles se aproveita, para criar uma ponte entre a tradição musical do Ocidente e o seu próprio “destilado” linguístico, conscientemente pleno de elementos nacionais.
A segunda Bachiana data de 1930 e não deixa de ser curioso notar certa identidade entre alguns aspectos “descritivos”, por assim dizer, dessa obra, e as tendências literárias da ficção brasileira de então. Se nesse momento floresce o romance dito regionalista em nossa Literatura, é interessante notar os subtítulos que Villa-Lobos atribui a cada um dos movimentos da obra: “Canto do Capadócio”, “Canto da Nossa Terra”, “Lembranças do Sertão” e, sobretudo, “O Trenzinho do Caipira”. Mais interessante do que traçar os seus aspectos pictóricos, porém, seria verificar, como, aí, se pode observar com clareza o trânsito mediador que Villa-Lobos estabelece entre a tradição musical do Ocidente, a música popular brasileira, o nosso folclore musical e as então novas tendências musicais dos grandes polos culturais europeus: Villa-Lobos se sente à vontade seja para explorar expressivamente o ruído, seja para expor sem receios um tema aos moldes da canção popular, seja para usar uma rítmica facilmente associada à estereotipia musical brasileira. Independentemente de rótulos ou tendências, Villa-Lobos e sua música falam por si só.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.