Maurice RAVEL
Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, contrafagote, 2 trompas, tímpanos, percussão, harpa, celesta, cordas.
Maurice Ravel por vezes encontrou inspiração no rico universo infantil, dado curioso na biografia do compositor que nunca se casou e nem teve filhos. Entre suas obras, Ma mère l’Oye é a mais diretamente dedicada às crianças, pela função de ensino pianístico em peças alusivas às estórias infantis. O título da obra faz referência a uma publicação de Charles Perrault (1628-1703), Les Contes de ma mère l’Oye, mas a música também menciona contos de Jeanne-Marie de Beaumont (1711-1780) e Condessa d’Aulnoy (c1650-1705). Sua primeira versão é uma suíte didática para duo pianístico que teve estreia em 20 de abril de 1910 e foi dedicada a Mimie e Jean, filhos de um casal polonês. Um ano depois surge uma orquestração da suíte seguida, em 1912, por versão de balé em que são adicionados dois movimentos (Prelúdio e Dança da roca de fiar) e breves interlúdios conectores. Essa versão foi estreada em 21 de janeiro de 1912 em Paris, sob regência de Gabriel Grovlez.
Prelúdio
O movimento de abertura funciona como “prefácio” ao universo fantástico que se seguirá. Como em sonho, os personagens (melodias) de diferentes estórias surgem em lampejos nesta música que se assemelha ao lento e tranquilo adormecer infantil. Os ambientes em que se desenvolvem as estórias, geralmente palácios e florestas, são descritos pelas trompas em longínquos toques sugestivamente imperiais e madeiras imitando sons de pássaros.
Dança da roca de fiar
A roca de fiar não pertence diretamente a nenhum dos contos descritos por Ravel. Esse antigo instrumento da manufatura têxtil, presente na Idade Média em lares e castelos, revela a atividade fiandeira praticada por mulheres de todas as classes sociais. Uma roda acionada por pedal gira imprimindo torção aos fios, ato contínuo transcrito musicalmente pela presença obstinada de glissandos (movimentos escalares que ascendem e/ou descendem rapidamente) e trilos (repetições rápidas entre duas notas).
Pavana da Bela Adormecida
Essa antiga dança cortesã foi duas vezes usada por Ravel em alusão à imagem do sono eterno de princesas, fruto de feitiçarias vingativas. A primeira dessas obras é a célebre Pavane pour une Infante défunte, escrita em 1899 para piano e orquestrada também em 1910. A Pavana da Bela Adormecida, diferentemente da predecessora, é uma peça composta em curta escala de duração, sendo a mais breve parte de Ma mère l’Oye. A música conta basicamente com três curtas seções de melodia acompanhada, sendo estas respectivamente entregues a flauta, clarinete e novamente flauta. Uma breve coda apresenta cordas com surdina, encerrando o movimento no limiar entre som e silêncio.
Conversações entre a Bela e a Fera
O compositor de Valses nobles et sentimentales e La Valse usa essa tradicional dança como ambiente discursivo para a estória de Jeanne-Marie de Beaumont: A Bela e a Fera. A presença musical do par é nitidamente demarcada: uma primeira seção caracteriza a Donzela em solo de clarinete seguida por seção em que a Fera se faz ouvir através do inusitado solo grave do contrafagote. Um terceiro momento apresenta os dois solos sobrepostos, sugerindo a conhecida cena em que Bela e Fera bailam juntos.
Pequeno Polegar
Neste movimento Ravel descreve detalhes dessa famosa estória. A obstinada movimentação escalar realizada por cordas sugere o contínuo caminhar do personagem pela floresta, e pizzicatos eventuais nos contrabaixos simbolizam pedacinhos de pão jogados pelo percurso. Uma bucólica melodia revezada por oboé e corne-inglês lembra a sorte do jovem herói surpreendido pelos pássaros que, presentes sonoramente nas madeiras e cordas agudas, fizeram dos pães-guia seu manjar.
Laideronette, imperatriz das pagodas
Laideronette, após quebra do encanto que a tornou feia, vira imperatriz das pagodas e reina com seu amado que, outrora, também por força de encanto, se aparentava a uma serpente verde. As pagodas, edificações orientais com torres pontiagudas, são descritas pelo solo de flautim em escala pentatônica, referência oriental típica. Uma sessão central solene anuncia a presença da imperatriz pelo ressoante tam-tam. A exemplo de Conversações entre a Bela e a Fera, uma terceira seção apresenta sobrepostos os temas principais das seções anteriores, ao que se segue breve e agitada finalização.
O jardim das fadas
É ignorada a existência de algum conto que inspira o movimento final, cabendo-nos a romântica sugestão imaginativa de um onírico jardim onde fadas e personagens fantásticos celebram em comunhão. A música consiste em coral lento para cordas com um “recitativo” central para violino solo que precede a derradeira apoteose. Finalmente, a textura coral das cordas retorna adensada e se une a marcantes figuras rítmicas repetidas pelos sopros, tímpanos e glissandos de harpa e celesta.
Alexandre Guimarães
Regente da Orquestra de Sopros da Fundação de Educação Artística e mestrando em musicologia pela UFMG, sob orientação do professor Oiliam Lanna.
OBS: texto publicado no programa do dia 30 de setembro de 2010.