A verdadeira fruição musical dos "Noturnos" de Chopin
| 3 set 2020
A viagem de inverno de Schubert com seu melhor intérprete
Existem inúmeros exemplos na história da música, e da arte em geral, de gênios que só foram reconhecidos décadas depois de suas mortes. Mesmo em vida, a grande maioria desses compositores tiveram o seu valor reconhecido pelo público e críticos da época. Um desses foi Franz Schubert.
Assim como Mozart, Schubert compôs muito, especialmente ao levar em consideração que sua vida foi até mais curta. Viveu apenas 31 anos. Suas obras mostram a mesma perfeição formal e técnica característica da música de Mozart, mas, influenciado principalmente por outro gênio contemporâneo, Beethoven, sua linguagem estética carrega uma dramaticidade que o posiciona como um dos compositores que funcionariam como elo entre o Classicismo e o Romantismo.
Embora tenha escrito desde sonatas para piano até missas, óperas e sinfonias, a grande “obra-prima” de Schubert se revela em suas canções. Aqui, sim, ele se diferencia de todos os seus contemporâneos, escolhendo devotar tanto tempo e talento a uma forma tão exclusiva, íntima e de penetração pública limitada. Mas as centenas de canções – ou lieder – que ele nos deixou expressam toda a profundidade do artista que ele era. Além disso, elas vieram a influenciar toda uma geração de românticos, como Schumann, Brahms, Mahler e Richard Strauss, que sem esse impulso inicial conferido por Schubert, talvez não tivessem produzido, eles mesmos, tantas obras-primas.
Os dois ciclos de canções mais famosos de Schubert são Die schöne Müllerin (A bela moleira) e Winterreise (Viagem de Inverno), escritos para tenor (mas passíveis de serem transpostos para qualquer voz) e piano. Viagem de Inverno utiliza vinte e quatro poemas de Wilhelm Müller e foram canções escritas em vários anos de atividade do compositor, mas publicadas em 1828, o ano de sua morte. O que mais nos encanta nessas canções é a habilidade de Schubert em traduzir musicalmente não só as imagens descritas nos poemas, mas o sentimento que elas evocam. Texto e música caminham paralelamente e holisticamente como se uma mesma pessoa os tivesse idealizados.
Ninguém até hoje conseguiu incorporar a essência destas canções e as transmitir em público como o grande barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau, um dos maiores músicos do século XX. Fischer-Dieskau não só tinha a habilidade vocal privilegiada, mas também a inteligência, a emoção e o respeito necessários, tanto ao texto quanto à música, para suas execuções. No link aqui escolhido ele também é privilegiado com um “acompanhador” como poucos, o pianista Alfred Brendel, um grande conhecedor e intérprete da obra schubertiana.
Como o ciclo é longo, não espero que todos tenham a oportunidade de escutá-lo por completo. Mas, recomendo. Outra dificuldade para quem não fala alemão é acompanhar o texto. Incluo abaixo do vídeo as traduções para aqueles que quiserem se aventurar nesse mundo mágico e misterioso. Mas, o que me parece ser único na magnífica interpretação de Fischer-Dieskau é que apenas pelas nuances, fraseados musicais e expressões faciais, somos capazes de sentir as imagens e ideias que ele nos está transmitindo: a dor, a esperança, o medo, o questionamento, o amor etc.
Essa é a grande qualidade do verdadeiro artista: comunicar profundas emoções na linguagem universal da música, do olhar e da humanidade incontida.
Ilustra este post um retrato feito por Wilhelm August Rieder.
1. Boa noite
Estrangeiro cheguei,
Estrangeiro parti.
O mês de maio acolheu-me
Com as suas muitas flores.
A jovem falou-me de amor,
A mãe mesmo de casamento.
Agora a natureza está tão desolada,
Com a vereda cheia de neve.
Para a viagem eu não posso
Escolher tempo:
Eu próprio devo trilhar o meu caminho
Nesta escuridão.
A minha sombra projetada pela lua
É o meu único companheiro,
E sobre a branca pradaria
Eu procuro as pegadas da caça
Por que devo permanecer mais tempo
Até que me expulsem?
Que uivem os cães
Defronte da casa do seu dono.
O amor gosta de vaguear
Deus assim o fez –
De um para o outro,
Minha bem amada, boa noite!
Eu não quero perturbar os teus sonhos,
Seria prejudicial para o teu repouso,
Tu não deves ouvir os meus passos –
Suave, suavemente fechem-se as portas!
Ao transpor o portão eu escreverei
Para ti: boa noite,
Para que tu possas ver
Que eu pensei em ti.
2. O catavento
O vento brinca com o catavento
No cimo da casa da minha amada,
E na minha loucura eu já pensava
Que ele queria zombar do pobre fugitivo.
Ele devia ter notado antes
A insígnia fixada nesta casa
E assim jamais tentaria procurar
Aí a imagem de uma fiel mulher.
O vento brinca com os corações
Como sobre o telhado, mas não tão alto.
Que lhes importa o meu sofrimento?
A sua filha é uma rica noiva.
3. Lágrimas geladas
Gotas geladas correm
Pelas minhas faces abaixo:
Ter-me-á escapado
Que tenha chorado?
Oh! lágrimas, minhas lágrimas
Sois tão mornas
Que vos converteis em gelo
como o orvalho da manhã fria?
No entanto, brotais da fonte
Do meu peito tão ardente
Que fundireis
Todo o gelo de inverno!
4. A imagem congelada
Eu procuro em vão na neve
Os vestígios dos seus passos,
Onde ela, comigo, de braço dado,
Vagueou pela verde campina.
Eu quero beijar o chão,
Penetrar no gelo e na neve
Com as minhas ardentes lágrimas
Até que eu veja a terra.
Onde encontrarei uma flor,
onde encontrarei a erva verde?
As flores estão mortas,
A erva está sem cor.
Não levarei, então, daqui
Qualquer recordação?
Quando o meu sofrimento desaparecer,
O que me falará dela?
O meu coração está como morto,
E a sua imagem aí enregelada:
Se porventura o meu coração fundir de novo,
Também a sua imagem se esvairá.
5. A tília
Junto da fonte, defronte do portão,
Ergue-se uma tília
À sombra da qual
Eu tenho sonhado tão felizes sonhos.
Na sua casca eu gravei
Tantas palavras de amor,
Na alegria e na tristeza
Sempre fui atraído para ali.
Também hoje eu fui levado
A passar por ela na noite sombria,
E mesmo na escuridão
Eu tive de fechar os olhos
E os seus ramos murmuravam
Como se chamassem por mim:
Aproxima-te, companheiro,
Aqui encontrarás o teu repouso!
Os ventos gelados sopravam
Em cheio na minha face,
O chapéu voou da minha cabeça
Mas eu não me voltei.
Agora estou a muitas horas
De distância desse lugar,
No entanto, ainda ouço murmurar:
Lá tu terias encontrado descanso!
6. Torrente
Muitas lágrimas dos meus olhos
Caíram na neve,
E os seus gélidos flocos,
Sequiosos, absorveram a minha dor ardente.
Quando a relva começar a brotar,
Então soprará uma brisa suave
E o gelo se fundirá em torrentes,
E a neve se dissolverá.
Neve, tu sabes da minha ansiedade;
Diz-me, para onde se dirige o teu caminho?
Segue as minhas lágrimas somente
E logo a corrente te transportará.
Tu percorrerás a cidade com elas,
Atravessando as ruas animadas
E quando sentires as minhas lágrimas a arder,
Essa será a casa da minha amada.
7. No rio
Tu que tão alegremente sussurravas,
Corrente transparente e selvagem,
Quão silenciosa te tornaste
Que nem dás uma palavra de despedida!
Com uma carapaça dura e rígida
Tu te cobriste,
Jazendo fria e imóvel,
Na areia, derramada.
Na tua crosta eu gravei
Com uma pedra pontiaguda
O nome da minha amada
E a hora e o dia:
O dia do primeiro encontro,
O dia da despedida,
O nome e as datas
Cercados por um anel partido.
Neste ribeiro, meu coração,
Reconheces a tua imagem?
Debaixo da sua crosta
Há também uma torrente impetuosa?
8. Retrospectiva
Sinto os pés queimarem-me,
Embora caminhe sobre a neve e o gelo.
Eu prefiro não respirar de novo
Até que as torres fiquem fora de vista.
Tropecei em cada pedra,
Tal a minha pressa de deixar a cidade,
De cada telhado, os corvos lançavam
Sobre o meu chapéu bolas de neve e granizo
Quão diferente me recebeste,
Tu, cidade da inconstância!
Nas tuas reluzentes janelas
A cotovia e o rouxinol cantavam ao desafio.
As rotundas tílias floresciam,
As claras fontes alegremente murmuravam,
e ah! dois olhos de moça brilhavam –
Então o que te aconteceu, amigo!
Sempre que esse dia me vem à lembrança
Eu gostaria uma vez mais de olhar para trás
Tropeçando novamente
E permanecer em silêncio diante da sua casa.
9. Fogo-fátuo
Nas mais profundas fissuras do rochedo
Atraiu-me um fogo-fátuo.
Como encontrarei saída
Não me pesa muito no espírito.
Eu estou habituado a vaguear,
Cada caminho tem o seu destino.
As nossas alegrias, as nossas tristezas
não são senão um brinquedo do fogo-fátuo.
Ao longo do leito seco da corrente da montanha
Eu desço tranquilamente,
Cada corrente se dirigirá para o mar,
E igualmente cada dor para a sua sepultura.
10. Repouso
Só agora eu vejo como estou cansado,
Quando me deito para descansar;
Andar anima-me o espírito
Ao longo de caminhos inóspitos.
Os pés não reclamaram por descanso,
Estava demasiado frio para permanecer parado,
As costas não sentiram qualquer fadiga,
a tempestade impeliu-me à frente dela.
Numa humilde cabana de um carvoeiro
Eu encontrei abrigo,
Mas os meus membros não conhecem repouso
Tão vivas são as feridas.
Também tu, meu coração, na luta e na tempestade,
Tão selvagem e rebelde,
Só, na tranquilidade, sentes a tua serpente
Levantar-se com a sua picada ardente!
11. Sonho de primavera
Eu sonhei com multicolores flores
Exatamente como elas florescem em maio;
Eu sonhei com verdes pradarias
Animadas com o canto alegre das aves.
E quando os galos cantaram,
Os meus olhos despertaram;
Estava frio e escuro,
Os corvos grasnavam no telhado,
Mas nos vidros da janela
Quem pintou as folhas ali?
Bem podeis rir-vos do sonhador
Que julgou ver flores no inverno!
Eu sonhei com amor por amor
De uma bela moça,
Com corações e beijos,
Com enlevo e bem-aventurança.
E quando os galos cantaram
Então o meu coração despertou,
Agora eu, sentado, na solidão,
Medito no meu sonho.
Eu fechei de novo os meus olhos
E o coração bateu-me tão fortemente.
Quando surgirão verdes as folhas na janela?
Quando cingirei a minha amada nos meus braços?
12. Solidão
Como uma nuvem escura
Atravessando o céu claro,
Quando no cume dos pinheiros
Uma suave brisa sopra,
Assim eu sigo o meu caminho
Com passos vacilantes,
Atravessando só e sem amigos
A vida alegre e feliz.
Ai, como o ar está tão tranquilo!
Ai, como o mundo irradia tanta Paz!
E enquanto as tempestades rugiam
Eu não era tão infeliz.
13. A mala-posta
Vindo da rua ouve-se o som da corneta do postilhão
O que se passa que bates tão alto,
Meu coração?
A mala-posta não te traz nenhuma carta,
O que te leva a bater tão singularmente,
Meu coração!
Ah! sim, a mala-posta vem da cidade
Onde eu tinha uma bem amada,
meu coração?
14. Queres porventura relancear
E perguntar o que se passa por lá,
Meu coração?
A cabeça grisalha
A geada lançou um reflexo branco
Sobre os meus cabelos.
Eu julguei que já era velho
E fiquei muito contente.
Mas depressa a geada fundiu
E os cabelos ficaram de novo negros,
Que tive medo da minha juventude,
Tão longe eu estava ainda do ataúde!
Entre o crepúsculo e a aurora
Muitas cabeças se tornaram grisalhas.
Quem acredita? e tal não aconteceu à minha
Durante toda esta viagem!
15. O corvo
Um corvo saiu comigo
Da cidade
E até hoje sem cessar
Voa à volta da minha cabeça
Corvo, estranha criatura,
Não me queres deixar?
Esperas pois, em breve, como presa,
O meu corpo aqui agarrar?
Bem, já não há muito a percorrer
Para o meu bordão e para mim.
Corvo, deixa-me finalmente contemplar
A fidelidade até ao fim!
16. Última esperança
Aqui e ali nas árvores
Vê-se muita folha colorida,
E eu fico defronte das árvores,
Muitas vezes, mergulhado em pensamentos.
Eu olho para uma folha
E suspendo as minhas esperanças nela;
Se o vento brincar com a minha folha,
Eu tremerei tanto quanto posso.
Ah! se a folha cair ao chão,
Cai com ela a minha esperança,
Eu próprio cairei ao chão
Chorando sobre a sua sepultura.
17. Na aldeia
Ladram os cães, chocalham as correntes;
Dormem as pessoas nas suas camas,
Sonham com muitas coisas que não têm
E encontram prazer nas coisas boas e más.
E de manhã cedo tudo se dissipa,
Que importa, eles saborearem a sua parte
E esperam reencontrar o que deixaram
Ainda sobre as suas almofadas
Ladra-me só de longe, cão de guarda!
Não me deixes sossegar na hora de dormitar!
Eu cheguei ao fim de todos os sonhos –
Por que entre os retardatários figurar?
18. Manhã de tempestade
Como a tempestade rasgou
O cinzento manto do céu!
Os farrapos das nuvens esvoaçam
Em volta, lutando sem forças
E as chamas de fogo rubro
Passam entre eles.
Isto é o que eu chamo uma manhã
Tal como se apresenta no meu espírito
O meu coração vê no céu
Pintada a sua própria imagem
Não é nada senão inverno,
O inverno frio e selvagem!
19. Ilusão
Uma luz dança alegremente diante de mim
Eu sigo-a daqui para ali
Eu sigo-a alegremente e vejo
Como atrai o peregrino.
Ah, quem como eu é tão infeliz
Entrega-se facilmente a qualquer ilusão,
Que, para além do gelo, da noite e angústia
Lhe prometa um abrigo alegre e quente
E dentro dele uma alma querida –
Mas a ilusão é tudo o que me resta!
20. O sinal de direção
Porque evito eu os caminhos
Que seguem os outros viandantes
E procuro escondido atalhos
Através das alturas rochosas cobertas de neve?
Eu nada de mal cometi
Para recear o meu semelhante –
Que insensata ansiedade
Me impele para o deserto?
Sinais de direção existem nos caminhos
Que conduzem às cidades
E eu vagueio incessantemente
E sem descanso, procuro descanso
Um sinal eu vejo ali
Indiferente ao meu olhar,
Uma rua eu devo percorrer
De onde não é possível regressar.
21. A estalagem
Para um cemitério
Me conduziu o meu caminho.
Aqui quero eu alojar-me,
Eu pensei para comigo.
Vós verdes coroas funerárias
Podeis bem ser os sinais
Que convidam os fatigados viandantes
A entrar na fria hospedaria
Mas estão nesta casa
Todos os quartos ocupados?
Eu estou extenuado e prostrado
De tal modo mortalmente ferido
Oh! estalajadeiro sem piedade
No entanto tu me rejeitas?
Então, a caminho, vamos embora,
Meu fiel bordão!
22. Coragem
Quando a neve voa contra a minha face
Eu sacudo-a,
Quando o meu coração no peito fala,
Eu canto clara e alegremente.
Não ouças o que ele me diz,
Não dês ouvidos,
Não sintas o seu queixume.
Lamentos são para os loucos.
Alegres pelo mundo dentro
Contra o vento e a tempestade,
Se não existem deuses sobre a terra
Sejamos nós os próprios deuses!
23. Parélios
Três sóis eu vi brilhar no céu
que eu contemplei longa e fixamente,
e eles ali ficaram tão obstinadamente
como se não quisessem afastar-se de mim.
Ah! meus sóis, vós não sois!
Voltais-vos e contemplai outros,
não há muito, eu próprio tinha três,
mas os dois mais belos fugiram
e se o terceiro também desaparecesse
na escuridão eu seria feliz.
24. O homem do realejo
Além, atrás da aldeia
Está um tocador de realejo
E com dedos rígidos
Ele roda o que pode.
Descalço sobre o gelo,
Vacila daqui para ali
e a sua pequena bandeja
está sempre vazia
Ninguém o quer ouvir
Ninguém olha para ele
E os cães rosnam
À volta do pobre velho.
E ele deixa correr
Tudo como Deus quer,
Ele toca, e o seu realejo
Jamais fica silencioso.
Estranho velho,
Devo ir contigo?
Queres tu tocar
As minhas canções no teu realejo?
A imagem deste post é de Wilhelm August Rieder (1875)
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