Heitor VILLA-LOBOS
Ao longo da vida, Villa-Lobos sempre cultivou o curioso hábito de reciclar suas obras antigas, dar-lhes uma roupagem nova e apresentá-las, muitas vezes, sob novos títulos. Fosse por falta de tempo, ou apenas para provocar seu público, que se via às voltas com a tarefa de descobrir porque algumas novas obras soavam tão familiares, o fato é que Villa-Lobos sempre procedera dessa maneira. Quando jovem, em Paris, para se afirmar como um compositor maduro, Villa-Lobos precisou lançar mão desse artifício algumas vezes, para demonstrar sua extrema versatilidade nos mais variados gêneros, da música solista à ópera, da música de câmara aos concertos e sinfonias. Quando já famoso, nos anos 1940 e 1950, o recurso de reaproveitar material antigo em novas obras lhe seria útil para cumprir as inúmeras encomendas que recebia. O dinheiro das encomendas lhe era extremamente necessário para custear o caro tratamento de saúde ao qual se submetera em 1948 e que se arrastaria por toda a vida.
Em 1929, enquanto ainda vivia em Paris, Villa-Lobos fez uma breve viagem ao Brasil para promover alguns concertos com suas obras no Rio de Janeiro e São Paulo. Ao contrário do que esperava, seus três concertos no Rio foram um fracasso de público e crítica. Enquanto se empenhava em evitar que a fria recepção se repetisse em São Paulo, a pianista brasileira Magda Tagliaferro, que vivia em Paris desde 1906 e estava também de passagem pelo Brasil, encomendou-lhe um concerto para piano e orquestra para ser estreado em Paris na temporada seguinte. Ao invés de escrever um novo concerto, Villa-Lobos optou por orquestrar um conjunto de oito peças para piano que compusera em 1919/20 intituladas O carnaval das crianças brasileiras. Nascia, assim, o Mômoprecóce, fantasie pour piano et orchestre sur le ‘Carnaval des enfants brésiliens’, que seria estreado por Magda Tagliaferro em Paris, há exatamente 80 anos, no dia 23 de fevereiro de 1930, sob a direção do maestro Enrique Fernandez Árbos.
Esta obra, extremamente alegre e festiva, sintetiza bem o estilo de Villa-Lobos da época. O jovem Villa-Lobos vivera em Paris entre os anos 1923/24 e 1927/30. Seu período anterior fora marcado por composições que mesclavam temas brasileiros com a delicadeza do estilo francês de Debussy e a força rítmica das danças espanholas de Albéniz e Granados. Porém, na capital francesa, foi a música de Stravinsky que mais arrebatou a alma do compositor brasileiro. Momoprecoce é um pouco de tudo isso, e vale a pena comparar as duas versões desta obra. Como o Carnaval das crianças brasileiras foi composto antes da primeira ida a Paris, sua música retrata bem as atmosferas oníricas francesas com um certo toque de dança espanhola. Porém, na orquestração que originou o Momoprecoce, do final dos anos 1920, é indiscutível a presença de Stravinsky e da escola russa. O colorido orquestral stravinskiano sobrepujou de tal maneira as características originais da obra que acabou por transformá-la em uma música praticamente diferente: ainda um pouco do Brasil, mas nada da França ou Espanha. O que ouvimos aqui é um Villa-Lobos russo.
Guilherme Nascimento
Doutor em Composição, professor de Música da UEMG e da Fundação de Educação Artística, autor do livro Música menor.